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Um pontificado e suas interpretaçõees

Muitas análises sobre o pontificado do Papa Francisco concentram-se em seus aspectos políticos e sociais, destacando seu engajamento em questões como desigualdade, ecologia e imigração. São temas fundamentais do seu pontificado, mas a ênfase quase que exclusiva nestes aspectos acaba reduzindo sua figura a de um líder global preocupado com causas humanitárias, em detrimento de uma compreensão mais ampla de seu ministério. Não é possível analisar o seu legado sem levar em conta os impactos que ele teve na política e na sociedade, mas estes impactos não esgotam seu significado deste legado.

Isto porque o os aspectos religiosos chamam a atenção nestas análises pela sua ausência. O pontificado de Francisco foi, antes de tudo o mais, um ministério espiritual, inserido na missão da Igreja Católica, com suas doutrinas, liturgias e missão evangelizadora. Ignorar essa dimensão é como focar, em um concerto, apenas na movimentação da batuta de um regente, sem considerar a música da orquestra. A religião não é um pano de fundo de gosto duvidoso em um pontificado, mas sim o fundamento que dá sentido às ações dele e às suas intervenções no mundo.

Esse silenciamento revela uma depreciação da dimensão religiosa, perceptível justamente por este silêncio. Quando se desconta o aspecto religioso do papado, a Igreja passa a ser vista como mais uma instituição humana, uma relíquia deixada pelas gerações mais antigas mais ou menos como o apêndice é uma relíquia da evolução no corpo humano: fica lá até incomodar e, quando incomoda, opera. É que sem essa dimensão perde-se muito facilmente de vista o que dá sentido a qualquer pontificado: sua missão transcendente. Reduzi-la a mais uma estrutura social no meio de sei lá quantas outras é negar sua própria razão de ser, pois, avaliada apenas por seus aspectos humanos, dá a impressão de que já deu o que tinha que dar.

Mas isso não é um problema das análises e dos analistas que deixam de lado a perspectiva religiosa. Cada qual aborda qualquer assunto a partir de seu próprio repertório, e ninguém tem a obrigação de dominar absolutamente todas as dimensões de qualquer assunto, principalmente os mais complexos.

Tanto é que também existem análises, por sua vez religiosas, que ignoram completamente os aspectos políticos e sociais do pontificado, como se a fé não tivesse implicações concretas no mundo, suspensa em um mundo abstrato muitas vezes formatado ao gosto de cada um.

Nenhuma abordagem é capaz de esgotar todas as facetas de coisas religiosas e nem de coisas não religiosas, mas é de se esperar que qualquer viés reconheça a existência de outros vieses, sejam eles concorrentes ou complementares, mesmo que não sejam abordados nem explorados em um determinado texto ou contexto: análises políticas não deveriam tratar a religião como irrelevante, assim como análises teológicas não podem agir como se as consequências sociais da fé fossem insignificantes.

No fim das contas a responsabilidade por uma visão mais completa está mais com quem lê do que com quem escreve. O leitor é mais ou menos como o estágio final de uma linha de produção, reunindo as peças dispersas produzidas em diferentes análises. Cabe a ele cruzar as perspectivas, equilibrando o político, o social e o religioso, para formar uma compreensão mais fiel do pontificado e dos outros fenômenos religiosos em toda a sua complexidade.